Quando 2018 chegou e trouxe consigo a famigerada “lista de realizações anuais”, um item da lista me assombrava: “Jogar 100 jogos diferentes durante o ano e documentar o processo”. Era quantificável (100 jogos), qualificável (estudar e documentar) e, quando você ainda nem começou, faltam 100 jogos. No dia 195 eu já havia jogado os 100 jogos e resolvi continuar a jogar, talvez dobrar o número de jogo. No dia 319, considerei o ano encerrado para o projeto com 198 jogos.
Mas Christhian você COMPLETOU 198 jogos em um ano? Não, longe disso. Antes de mais nada este foi um projeto de estudo de game design, paralelo à especialização e ao trabalho de desenvolvimento independente. Ou seja, não joguei os mesmos do início ao fim, e isso fez parte da metodologia de estudo.
Desde o início, o objetivo do projeto era documentar uma análise de game design dos jogos a partir de efetivamente jogar os jogos. Não de forma definitiva e extensiva, mas sim observando a aplicação do loop central de jogabilidade e das mecânicas essenciais do jogo (que pudessem ser observadas durante o tempo jogado). Geralmente estas observações podem ser feitas e analisadas entre 5 e 30 minutos dependendo da complexidade e do ritmo do jogo.
A perspectiva de jogar e documentar como forma de estudo foi inspirada em um post do game designer e pesquisador Vicente Mastrocola, o Vince Vader (e, depois de passar por todos os posts do Game Analyticz até 2013 procurando o link, descobri que o texto estava em outro blog do Vince), onde ele apresenta o método de análise que ele utiliza, criando um “diário lúdico”. Este método foi a inspiração para este projeto.
Com os objetivos e o método determinados, optei por realizar as análises de forma pessoal e não publicá-las individualmente como reviews, tornando a documentação um fichamento digital de tudo que era observado e aprendido durante o processo. Decidi utilizar uma metodologia bastante similar à do Vince Vader de documentar tudo através de uma simples tabela nas Planilhas do Google Drive (durante o ano cheguei a desenvolver um aplicativo móvel num fim de semana, mas o mesmo não foi utilizado e serviu apenas como diversão), com os seguintes itens:
Jogo: nome do jogo.
Data: dia em que foi jogado.
Plataforma: contexto e plataforma onde foi jogado, sem o detalhamento dos dispositivos de entrada.
Mecânicas: lista de mecânicas observadas, sem regras rígidas de documentação.
Loop: resumo do loop central de jogabilidade.
Considerações: caso fosse necessário documentar alguma consideração extra, como questões estéticas, dinâmicas observadas, problemas ou destaques.
Com essa contextualização quase “metodológica” podemos finalmente chegar aos “resultados”. Posso assim apresentar alguns pensamentos e perspectivas que surgiram durante o ano, como forma de compartilhamento do aprendizado:
Jogar como uma forma de estudo
Para começar, o primeiro pensamento que acho importante ser apresentado é que devemos aprender a jogar como uma forma de estudo, ou seja, aprender a analisar enquanto se joga e ao mesmo tempo não deixar de viver uma experiência, mesmo que breve. Esse pensamento não é novo, mas pessoalmente ficou bastante evidente durante o projeto.
Koster (2014, cap. 9) apresenta um pensamento sobre o jogar contextualizado que demonstra abordagens de como se joga e como se percebe o que se joga em diferentes contextos. Esse entendimento de que o contexto muda a percepção é importante de ser levado em consideração quando se fala em “jogar como forma de estudo”.
Ao revisar a lista com os 198 jogos deste ano, diversos jogos tiveram o loop e/ou as mecânicas similares. Ou seja, se o contexto fosse apenas analítico, a análise poderia ser limitada à essa percepção. Porém, ao “permitir-se” jogar o jogo também pela experiência e então tentar observar as decisões feitas pelo designer do jogo, muitas vezes foram observadas escolhas que diferenciavam as experiências e assim eram mais relevantes como conhecimento.
São estes conhecimentos que devem ser buscados ao estudar através do jogar, evitando ao máximo uma observação de engenharia reversa dos sistemas do jogo e evitando também a busca de uma “receita” de como criar um jogo.
Também, deve se levar em consideração as ressalvas de Koster (2014) sobre a análise de jogos por parte de designers. O autor (p. 140) fala da possibilidade das análises interferirem no surgimento criativo de novas soluções de design quando são utilizadas como inspiração para novos jogos: “é fundamental que os jogos sejam colocados em contexto com o resto do esforço humano, para que os designers possam se sentir à vontade para se aventurar fora de seu campo em busca de ideias inovadoras.”
Levando isso em consideração, ao mesmo tempo enquanto joga, pergunte-se os porquês das decisões, como elas influenciam a experiência e como elas poderiam ser diferentes (isso não significa melhor, mas literalmente “outras” decisões).
Um exemplo: “Por que o personagem se move naquela velocidade? O que aconteceria se fosse um pouco diferente e o movimento fosse 15% mais veloz? O que aconteceria se fosse muito diferente e o movimento fosse automático, ou o inverso do input, ou ainda, dependesse do horário do dia?” Assim, quando for a sua vez de criar um jogo, você poderá utilizar esses questionamentos nas suas próprias decisões.
A importância do loop
As ideias de loop, loop central, core loop, loop de jogabilidade, loop de jogo, entre outras, têm sido apresentadas por diferentes designers e autores, e quase sempre falam de um conceito parecido: uma forma de estruturar o ciclo de jogabilidade.
Esse conceito pode ser mais ou menos formal, dependendo da complexidade com a qual é observado, mas de forma geral, é um resumo da “essência do jogo” visto através da interação. Essa observação busca descrever o que o jogador faz em um “ciclo” do jogo.
Vamos à alguns exemplos hipotéticos:
A descrição de um jogo simples de plataformas, sem inimigos e coletáveis, poderia ser “Iniciar a fase > Movimentar-se pelo cenário > Chegar ao final da fase”. Parece um jogo bastante simples é possível entender tudo que o jogador precisa fazer e parece que se não houverem obstáculos eles não são relevantes, assim como parece pouco relevante a possibilidade do personagem morrer.
Agora, se este mesmo jogo só permitisse passar de fases após coletar todos os coletáveis? O loop poderia ser “Iniciar a fase > Movimentar-se pelo cenário > Coletar todos os itens > Desbloquear o final da fase”. Temos um jogo diferente do anterior, sabemos que há um bloqueio que nos impede de seguir adiante.
Para quem conhece alguns dos documentos de design, perceberá que parece quase um “resumo” do High Concept, e o nível de complexidade da descrição do loop varia conforme a observação ou a criação. Recomendo o acesso à alguns links que falam um pouco mais sobre o conceito de loop:
Pelo que parece, é possível afirmar que praticamente todo jogo tem um loop, mesmo que às vezes seja complicado de descrevê-lo, e isso acontece pela complexidade, por ser uma proposta muito diferente do habitual ou, por não ser possível “entender” o jogo.
Loop de input: quais botões são apertados para realizar uma determinada ação do jogo? Essa sequência se repete ou evolui durante o jogo? Diferentes jogadores têm diferentes estilos? Diferentes tipos de dispositivo geram diferentes inputs? Os dados poderiam até mesmo ser coletados de uma maneira técnica, tabulando-se os microssegundos de cada tecla.
Loop de pontuação: quais mecânicas geram pontuação para o jogador? Como é a relação entre elas? O que acontece quando uma é modificada?
Loop de puzzle: quais as decisões que o jogador precisa tomar para resolver um estilo de puzzle?
Loop de interdependência: alguns jogos acabam apresentando loops dentro de loops, e essa observação pode ser válida. Por exemplo, a “compra de melhorias de características” após a “coleta de algum recurso”, sendo dois loops interdependentes.
A essência dos gêneros dos jogos
A classificação de jogos através de “gêneros” ou “categorias” é uma maneira simples de contextualização mercadológica para o consumidor, ou seja, através da
Para o design os gêneros devem ser utilizados de forma criativa, seja pelo reforço de características essenciais, seja pela subversão destas características de forma consciente.
É importante entender que a classificação errada de um jogo pode resultar em insatisfação por parte dos jogadores, já que um consumidor pode sim ser levado à tomada de decisão baseada na classificação de gênero do jogo.
Nem todo jogo consegue ser classificado dentro de um ou mais gêneros, e geralmente isso é bom, pois demonstra a percepção de algo “diferente”.
Ou seja, a essência dos gêneros precisa ser entendida tanto pela perspectiva de design como pela perspectiva mercadológica.
Diferenciação
Enquanto o gênero é uma forma de comparação e categorização, encontrar o que faz o jogo único é papel da diferenciação. Novamente, uma das formas de observar esta diferenciação é justamente através do loop de jogabilidade, pois geralmente ela se destaca entre as características comuns que já são esperadas pelo jogador.
Controles que realmente controlam
Controles são essenciais quando se fala de jogos digitais. Eles são o meio de input do jogador para o jogo, independente do meio. O meio em si requer um debate mais amplo do que a proposta deste texto, pois é uma discussão da cibercultura sobre a relação entre humanos e computadores/máquinas.
Controles precisam controlar.
Controles precisam nos fazer interagir.
Controles não devem limitar.
Parece evidente a relevância e a relação desta observação, e provavelmente elas não são exaustivas e nem mesmo definitivas, uma vez que estou tratando aqui de uma observação superficial, sem mergulhar em temas muito importantes como a acessibilidade.
Quem se adapta a quem
Esta é uma observação simples do reflexo das escolhas de design. E nenhum lado parece estar “certo”, sendo propostas diferentes.
“Algo para fazer em cada tela”
Esta perspectiva é complexa, pois implica em decisões específicas de design e de conteúdo. A percepção de que é necessário algo para fazer em cada tela pode escalar rapidamente o escopo de um projeto, ao mesmo tempo não ter o que fazer pode tornar a experiência de jogar pouco atraente.
Múltiplas versões de um mesmo jogo
Uma das observações que surgiu de forma espontânea durante o ano foi a observação das diferentes implementações de um mesmo jogo, seja em plataformas diferentes, seja utilizando um controle diferente, seja em títulos que são sequências de um jogo. Ou seja, é interessante observar o contexto externo do jogo.
Estude e jogue jogos próximos e opostos
Existem muitos jogos. E é necessário jogar “de tudo”. Após jogar 198 jogos em um ano, percebi que é possível aprender muito com jogos que são opostos aos seus “gostos pessoais”, “objetos de estudo”, ou seus “estilos de produção”.
Entenda o outro
Por fim, talvez o ponto mais importante entre todos seja o “entender o outro”. Essa é uma perspectiva de humanização do design de jogos, já que uma parte significativa do design de jogos trata da comunicação e da interpretação que acontece entre o jogador e o desenvolvedor.
Para fim de contextualização, apresento alguns números sobre o projeto em si.
Optei pela diferenciação de “contexto” dos jogos de PC entre Steam, PC e SBGames para fins de organização. Os jogos de PC são protótipos ou DRM-Free, já os jogos da Steam são jogos acessados através da Steam e os jogos “PC — SBGames” foram jogados durante o evento, logo, há uma questão de ambiente externo que poderia influenciar a observação; assim os jogos nas três categorias são todos da “plataforma” PC.
Uma autocrítica ao projeto:
O que deu errado durante o processo?
Pacotes de jogos: são ofertas de jogos vendidos em conjunto, geralmente com descontos. Utilizei o Humble Bundle que adiciona frequentemente novos pacotes (bundles), que geralmente tem o preço inicial de $1, e mesmo por este preço já permite o acesso à cerca de 3–6 títulos, variando em cada oferta.
Assinaturas mensais: são assinaturas que, ou permitem que você acesse bibliotecas por 1 mês, ou permitem que você adquira um pacote de jogos diferenciado. Assinei durante alguns meses o Game Pass do Xbox One, que permite o acesso à uma biblioteca de jogos que são atualizados frequentemente; e, também assinei em alguns meses específicos o Monthly do Humble Bundle, que é uma assinatura mista, ou seja, é a aquisição de um pacote especial de jogos e também permite o acesso à biblioteca Trove; lembrando que existem outras assinaturas em diferentes consoles e lojas on-line.
Jogos gratuitos: são jogos que permitem que você os jogue gratuitamente, sejam jogos free-to-play, protótipos, ou demos. E, em praticamente todas as lojas digitais de jogos existe uma categoria ou um filtro para jogos gratuitos. Utilizei no projeto o Itch.io, diversos jogos gratuitos para celular, e jogos criados em game jams.
Importante: As empresas, produtos e serviços foram citados de forma espontânea por terem sido utilizados no projeto, os mesmos não tem relação com o projeto e não realizaram nenhum pagamento para serem citados.
Referências:
KOSTER, Raph.
Originalmente publicado em mododejogo.com.br.